quarta-feira, 8 de abril de 2009

Domingo

Num olhar mais atento na prancheta, ela notou pequenos esboços se formarem sob os croquis. Traços simples, como os de uma criança, iam se delineando nas folhas de papel. Era uma gatinha. Ela corria, brincava e pulava alegre; Adele acompanhava com o olhar atento os movimentos do filhote. Uma mancha vermelha ia tingindo aos poucos os desenhos que livremente preenchiam o longo espaço das folhas. Um filete vermelho como sangue. Púrpura. Adele esfregara os olhos naquele instante.

Quando tornou a olhar novamente as folhas, reparara que eram as mesmas de antes, brancas e inabitadas de sempre. Talvez fora o cansaço que a deixara naquele estado de sonolência. Estava tão imersa em seus pensamentos que havia esquecido por completo o que fazia, só voltou a realidade quando percebeu que derrubara a caneta vermelha no chão. Aproveitou o momento e se espreguiçou tranquilamente como uma gata manhosa. Precisava de uma xícara de café urgente.

Levantou-se, dirigiu-se até a cozinha e tomou um grande gole com vontade. Olhou para o relógio e percebeu que era tarde.Voltou para a prancheta e olhou meio desatenta para os croquis espalhados. Tinha concluído boa parte do projeto. Faltavam apenas dois cortes da planta. Seus trabalhos sempre rendiam mais a noite do que na parte da manhã, momento em que não estava completamente desperta. O silêncio da noite ajudava-lhe a se concentrar melhor. No entanto, por mais que tentasse continuar o trabalho, seus pensamentos tomavam um outro caminho, se perdendo em meio a uma névoa branca que invadia de tempos em tempos a estrada.

Adele odiava os domingos. Procurava sempre preencher com alguma ocupação as horas vazias do dia. Depois do almoço, ela tinha ido andar um pouco pelo centro da cidade, quando vira uma imagem que a consternara. Vira uma gata ainda filhote, ferida, os bigodes queimados. Mancava com a pata machucada e parecia miar de fome. Procurava não pensar muito no assunto, mas com grande insistência a imagem conseguia ludibriá-la e reaparecia com mais força em sua mente.

Aquela imagem que não durara mais do que dois minutos, provocara nela uma dor aguda, lacerante no peito tal como o corte afiado da faca na carne. Sentia medo. Havia o medo de continuar sozinha como aquela gata na rua. Assustada e ferida. Abandonada a sua própria dor.

Um comentário:

  1. Adorei o texto. É possível imaginar através dos desenhos das palavras o tamanho da dor de se ficar só.Parabéns!

    ResponderExcluir