quinta-feira, 16 de julho de 2009

A rosa branca


As espumas cobriam o corpo, deixando pequenas mostras de seus contornos a vista. Contemplando o corpo nu, Adele percebia que o contraste do branco da pele com o vivo vermelho dos cabelos formava uma harmoniosa composição.

Era uma flor desabrochando em volúpia. Era rosa. Rosa bela, rosa branca. Olhava com os olhos de uma amante exigente; os olhos presentes e inquietos. Mirando-se na água, apaixonava-se por sua imagem refletida.

Durante o banho, ela se acariciava como uma mãe zelosa. Aquelas primeiras carícias eram um gesto de amor. O acolhimento do filho faminto ao seio materno. Os braços enlaçando o seu corpo de fêmea como um refúgio e proteção. Fechava os olhos para se entregar inteiramente a esse deleite.

Era o desejo explodindo em sua carne.Uma perturbação a invadia por inteiro. Seu corpo ardia e um comichão corria pela espinha. Um doce cansaço a envolvia ao sentir a leve pressão de suas mãos. Eram cócegas provocadas pelo roçar dos dedos dentro de sua alma. A verdadeira fruição da liberdade.Soltou um espasmo, lânguido e longo.

Ela conseguira atingir o interior de si mesma. Conseguira explorar as suas mais profundas e secretas trevas.Não havia resistência. Havia apenas um alegre abandono. Uma febre que a libertava temporariamente. Mágica e ao mesmo tempo assustadora.

Deixou-se ficar abandonada na água, quieta; sentindo-se acolhida por aquele abraço morno durante um tempo. Levantou-se da banheira calmamente e vestiu o roupão. Era só ela. Nada poderia substituir esse encontro amoroso consigo mesma. Estava feliz. Liberta. Era isso que importava.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sexta-feira à noite


Sexta-feira. Os sons lá fora denunciavam que havia vida na cidade. Aos poucos, eles diminuíam o seu ritmo frenético e se calavam por instantes para contemplar a noite sem luar. Se lá fora existia o silêncio, o grito mudo queria explodir dentro do apartamento de Adele. 


Ela roía as unhas impaciente, tentando em vão controlar a ansiedade que a dominava. Escorria água dos cabelos curtos e molhados, ferindo os ombros nus como picadas de mosquito, a camiseta mal cobria a alvura das suas coxas, mas não era isso que a perturbava. Descalça, andava pela casa, sem rumo, sem direção certa. Andava mais pelo comando das pernas do que pela consciência do que fazia.Uma raiva intensa começou a surgir. Incontrolável. Prestes a romper como a lava espessa, quente e borbulhante do vulcão em erupção. Era uma mulher de temperamento forte e de pavio curto. Impulsiva. Paciência e calma eram duas palavras que não existiam no vocabulário de Adele. 


Estava esperando há horas e nenhum telefonema, nenhuma mensagem, nenhuma porra de resposta. Ela estava cansada disso. Quem o filho da puta pensa que eu sou? Alguma trouxa? Ele acha que sou burra? Que não percebo as coisas? Mas isso não ia ficar assim, não! Por que não sou mulher de aguentar desaforo calada. Se ele estiver aprontando alguma, ele ia se fuder. Por que vou dar o troco e será pior, muito pior. Se ele realmente pensa que vou ficar ali esperando feito uma idiota por ele, está completamente enganado. Se ele acha que vou ficar chorando pelos cantos...o cacete. Por que faço pior, muito pior. Agora que eles estavam conseguindo lidar melhor com as diferenças, ele aprontava com ela. Há seis meses moravam juntos, esta era a terceira vez que ele desaparecia sem dar a menor satisfação. Ela já tinha aguentado demais. Ele realmente não sabia do que ela era capaz. 


Resolveu se sentar no peitoril da janela e olhar a bela noite que fazia. Ao invés de acalmá-la, a tranquilidade da noite lhe irritou profundamente. O tempo ia passando devagar como se não tivesse pressa em devorá-la. Preferia matá-la aos poucos.O jantar, que fora preparado com tanto cuidado, havia esfriado. Na casa, as janelas observavam os pratos vazios, os talheres inúteis, a comida insensível à dor daquela que a preparara a pouco. 


O gosto amargo do ódio subia-lhe pelo estômago e dava-lhe uma azia terrível. Num súbito impulso, ela saiu correndo em direção ao quarto. Abriu o guarda-roupa e atirou as roupas dele sobre a cama. Jogou-as indistintamente, sem piedade sobre a mala que havia embaixo da cama. Depois de fechar bem a mala, colocou-a no corredor lá fora. Em seguida, escolheu um vestido, o mais decotado, o mais curto e abusado que tinha no guarda-roupa. Olhou-o demoradamente. Namorou por um longo tempo. Então, tirou a camiseta, e colocou-o sobre o corpo. Pegou as sandálias de salto, calçou-as e olhou-se no espelho cheia de malícia. Logo depois, apanhou a bolsa e caiu na noite.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Domingo

Num olhar mais atento na prancheta, ela notou pequenos esboços se formarem sob os croquis. Traços simples, como os de uma criança, iam se delineando nas folhas de papel. Era uma gatinha. Ela corria, brincava e pulava alegre; Adele acompanhava com o olhar atento os movimentos do filhote. Uma mancha vermelha ia tingindo aos poucos os desenhos que livremente preenchiam o longo espaço das folhas. Um filete vermelho como sangue. Púrpura. Adele esfregara os olhos naquele instante.

Quando tornou a olhar novamente as folhas, reparara que eram as mesmas de antes, brancas e inabitadas de sempre. Talvez fora o cansaço que a deixara naquele estado de sonolência. Estava tão imersa em seus pensamentos que havia esquecido por completo o que fazia, só voltou a realidade quando percebeu que derrubara a caneta vermelha no chão. Aproveitou o momento e se espreguiçou tranquilamente como uma gata manhosa. Precisava de uma xícara de café urgente.

Levantou-se, dirigiu-se até a cozinha e tomou um grande gole com vontade. Olhou para o relógio e percebeu que era tarde.Voltou para a prancheta e olhou meio desatenta para os croquis espalhados. Tinha concluído boa parte do projeto. Faltavam apenas dois cortes da planta. Seus trabalhos sempre rendiam mais a noite do que na parte da manhã, momento em que não estava completamente desperta. O silêncio da noite ajudava-lhe a se concentrar melhor. No entanto, por mais que tentasse continuar o trabalho, seus pensamentos tomavam um outro caminho, se perdendo em meio a uma névoa branca que invadia de tempos em tempos a estrada.

Adele odiava os domingos. Procurava sempre preencher com alguma ocupação as horas vazias do dia. Depois do almoço, ela tinha ido andar um pouco pelo centro da cidade, quando vira uma imagem que a consternara. Vira uma gata ainda filhote, ferida, os bigodes queimados. Mancava com a pata machucada e parecia miar de fome. Procurava não pensar muito no assunto, mas com grande insistência a imagem conseguia ludibriá-la e reaparecia com mais força em sua mente.

Aquela imagem que não durara mais do que dois minutos, provocara nela uma dor aguda, lacerante no peito tal como o corte afiado da faca na carne. Sentia medo. Havia o medo de continuar sozinha como aquela gata na rua. Assustada e ferida. Abandonada a sua própria dor.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Quarta-feira de Cinzas

Enquanto as fantasias e máscaras se confundiam na multidão, a serpentina e o confete enfeitavam com suas cores as calçadas.
E as risadas, as cantorias e batucadas enchiam de vida as ruas. Ainda havia resquícios do carnaval na cidade.

À medida que Adele caminhava em direção a praia, o barulho ia ficando mais distante. Só havia o som das ondas chicoteando o ar. Ali ela não seria incomodada.


Quando parou para olhar o mar, notou a presença de uma jovem não muito longe dela. Ela virou em sua direção e sorriu.


- Você está fugindo da multidão?


- Parece que não sou a única.


- É verdade.


Adele caminha até a água e molha os pés, enquanto Maria se aproxima devagar.


- O mar estava me chamando, eu não podia recusar o seu convite.


- Acho que ele não vai se importar se tiver mais uma pessoa como companhia.


Alegre, Adele entra no mar e convida a nova amiga a se juntar a ela. No entanto, um pouco tonta por causa da bebida, ela tropeça e cai. A jovem, que a observava atentamente, corre em seu socorro.


Uma onda mais forte a desequilibra e faz com que caia por cima de Adele. Ambas rolam pelo chão e começam a rir. Ao tentar levantá-la, Maria toca no corpo dela com firmeza, a outra finge não notar o movimento.


As duas sentam-se na areia e em silêncio contemplam a paisagem noturna. Depois de um tempo, Maria vira para o lado de Adele e toca no seu rosto, que se assusta com o movimento e rapidamente recua. A primeira se aproxima novamente e abraça a outra carinhosamente.


Era um abraço terno como o carinho de uma mãe que protege o seu bebê. Envolvida por esse abraço, Adele começa a chorar. Naquele instante, sentiu uma grande tensão partir, como um raio, o seu âmago em dois: era, ao mesmo tempo, o seu desejo infantil de proteção e o desejo latente da mulher.


Nunca havia sido tocada com tanta delicadeza. Um gesto de amor genuíno e tão espontâneo fora dado por uma completa estranha.


Uma sensação de bem-estar misturada com um estranhamento a invade por completo e assim, ela aceita as carícias da amiga e as retribui com gratidão.


Um beijo brota dos lábios fraternos. Um beijo longo, salgado, sem pressa e medo de ser saboreado. Enquanto isso, os primeiros raios de sol aparecem no horizonte, iluminando as latas de cervejas e garrafas vazias espalhadas pelas ruas.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Uma noite de verão


Adele olhava impaciente a janela, apesar da noite quente e abafada convidá-la para uma apreciação do céu sem estrelas. À medida que o tempo ia passando, o seu nervosismo aumentava, tão grande era a ansiedade por encontrá-lo. A sua cabeça estava transtornada, seu corpo suava, as mãos estavam frias e as batidas do seu coração, aceleradas.

Pela janela, avistou um carro se aproximando do prédio. Assim que o reconheceu, ela desceu as escadas correndo. Sentiu um tremor desgovernado nas pernas, uma falta de ar, um terrível sufocamento.


Encontrou-o na entrada, quase na mesma hora em que ele ia chamá-la por interfone. Imediatamente eles se olharam e sorriram um para o outro. Depois de tanto tempo, eles finalmente se encontraram.

Andaram lado a lado sem pressa, falando de coisas banais até chegar o andar dela. Entraram na sala e pararam ao lado da porta. Ele se aproximou dela e tocou nos seus cabelos carinhosamente, brincou com uma mecha que insistia em cair nos olhos de Adele.

Olharam-se por alguns instantes. O brilho desse olhar era tão intenso quanto a chama azul do fogo. Eles podiam sentir essa chama consumindo-os por dentro, assim como a brasa consome lentamente um pedaço de madeira.

Era uma febre invadindo o corpo, entorpecendo os sentidos como o gosto acre da cachaça rasgando a garganta. A pimenta forte no céu da boca. As palavras foram desnecessárias para traduzir o que sentiam ou o que queriam naquele momento. Logo começaram a se beijar com voracidade.

Ela sentia o toque macio das mãos deles no seu corpo. A força dos seus braços quando ele enlaçava a sua cintura. O áspero e adocicado contato da sua língua na boca. Saboreava o beijo quente que incendiava a sua alma. Estava inebriada com o gosto daquele homem.

Braços, pernas, mãos se enroscavam, se tocavam, se acariciavam com ardor numa dança ritmada. Os movimentos eram criados na medida em que iam descobrindo e explorando o corpo do outro. Era a verdadeira fruição da liberdade.

E se entregaram a esse jogo até restar apenas o silêncio no quarto.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Fruto Proibido


Os fogos no céu anunciavam o novo ano que se iniciava. A maioria das pessoas contemplava maravilhada a explosão de cores no ar. Menos Adele.

Satisfeita, ela olhava o homem deitado ao seu lado, que dormia tranqüilamente. Observava atentamente os detalhes do seu corpo viril com uma ternura voraz. Analisava cada parte como se estivesse contemplando uma obra de arte. Um Apolo de carne e osso.

Sua pele branca era tão sedosa e aveludada que Adele tinha vontade de mordê-la infinitamente. Ela exalava um cheiro adocicado que a deixava extasiada.Voltou a se deitar e ele instintivamente a envolveu num abraço acolhedor.

Ela sentiu o contato dos cachos desalinhados e a maciez da barba dele no pescoço, o que lhe provocou cócegas como o roçar de penas no corpo.

Estava ainda embriagada do sumo quente que vinha da sua boca. Era um refresco para sua alma sedenta num dia de calor.

Os olhos dela brilharam e uma alegria a invadiu por dentro. Ele era o fruto que há tempos ela cobiçava e queria provar.